INTRODUÇÃO
A Igreja Católica, desde sempre,
usa como obra oficial a versão dos setenta ou como também é conhecida, a
“septuaginta”. Não só ela, mas, também às Igrejas Orientais (ortodoxas e
uniatas) e até mesmo em antigas publicações de algumas versões
protestantes. Ainda que a lista de livros inspirados tenha sido afirmada
através dos antigos concílios, discussões e problemas sempre foram levantados,
seja para confrontar as obras deuterocanônicas do velho testamento,
seja para com os escritos que compõe o novo. Embora tais divergências
tenham sido motivos de discussões na cristandade, a grande e esmagadora maioria
de padres, bispos e teólogos, concordaram que a lista já usada (versão grega)
pelos apóstolos e pelo próprio Cristo, deveria ser mantida e inalterada. Com
base em inúmeros testemunhos e pela inspiração do Santo Espírito que conduz a
Igreja, chegamos à era atual com a totalidade de 73 livros (46 do velho + 27
do novo).
Embora o catolicismo, usando de sua autoridade
dada pelo próprio Deus (1 Tm 3,15; Mt
16,18),
tenha afirmado a canonicidade de tais obras, séculos depois, o ex-monge
agostiniano chamado Lutero, acreditando estar sendo conduzindo pela verdade,
retirou sete livros das sagradas escrituras por pensar que não eram inspirados,
uma vez que, os Judeus que já haviam rejeitado a Jesus, não tinham tais livros
como palavra divina (Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico
e Baruc). Para outras confissões cristãs (pentecostais e
protestantes históricos), os sete livros que consistem na tradução grega,
estão em desacordo e possuam erros, entretanto, sabemos que isso não passa de
mais um ataque gratuito sem qualquer fundamento teológico e histórico. Com a
intenção de mostrar os verdadeiros ensinos da fé sobre tais temas, o presente
artigo confronta as mais variadas acusações e irá trazer ao leitor, a luz da
verdade ensinada através da Santa Igreja Católica.
Não trataremos do aspecto histórico ou do enredo
literário de cada escrito e sim, traremos aos leitores três acusações feitas
contra o livro de Judite e as refutaremos.
Livro a ser
defendido: Judite
Ano: Escrito na Palestina por volta do século II antes
de Cristo (150 a.C.)
Informações
adicionais: “O livro de Judite chegou até nós em versão
grega, sendo, portanto contado entre os “deuterocanônicos”. É possível que
tenha sido escrito originalmente em hebraico ou aramaico por um autor
desconhecido, logo depois da guerra dos macabeus contra os sucessores de
Alexandre Magno, os selêucidas. A figura de Holofernes, em Judite, lembra
fortemente o rei selêucida Antíoco Epífanes, pivô da revolta dos macabeus”
(introdução ao livro de Judite, Bíblia Sagrada, tradução da CNBB).
REFUTANDO
OS FALSOS ARGUMENTOS
1 - Primeiro (falso) argumento: O livro não é
citado por nenhum escritor do Novo Testamento.
Assim como está mencionado no primeiro texto da
série que aqui apresentamos aos leitores (“Defendendo a Septuaginta”), nem
todos os livros do velho testamento declaram-se inspirados (Ex: Crônicas) e nem
sempre essas mesmas obras são citadas pelos escritores do novo testamento (Ex:
Ester), e em outras (Ex: Cantares) nem o nome de Deus é citado, porém, em
nenhum momento tais escritos poderiam ser retirados da coleção inspirada que
temos atualmente na bíblia sagrada.
Situação
essa, não aplicada ao livro deuterocanônico de Judite. Em pelo menos duas
oportunidades, identificamos o uso da obra pelo apóstolo São Paulo. A primeira
passagem que concede-nos à certeza de que o apostolo dos gentios tinha
conhecimento e utilizava-se do livro dessa grande mulher, está na primeira
epístola aos Coríntios.
PRIMEIRA REFERÊNCIA
Paulo afirma
em seu texto:
1 Cor 2,9-11 – “Mas, como está escrito: As
coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, E não subiram ao coração do
homem, São as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las
revelou pelo seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as
profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão
o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de
Deus, senão o Espírito de Deus”.
No primeiro bloco da pericope, Paulo usa a
afirmação “está escrito” para iniciar seu raciocínio e utiliza-se da passagem
de Isaías 64,4. Já na continuação, o
apóstolo faz um paralelo com o texto de Judite
8,14.
Jd 8,14 – “Pois não sois capazes de
sondar a profundeza do coração humano nem de captar as razões do seu
pensamento: como então perscrutaríeis a Deus, que fez todas estas coisas,
conheceríeis o seu pensamento e sondaríeis o seu projeto? Absolutamente,
irmãos, não provoqueis o Senhor nosso Deus”!
Assim como Judite, Paulo afirma que Deus é um
ser transcendente e que ninguém pode sondar as ações do Senhor, uma vez que é
dEle que emana todo o espírito do conhecimento.
SEGUNDA REFERÊNCIA
Alguns capítulos posteriores, ainda em sua
primeira carta aos Coríntios, São Paulo faz uma segunda referência ao uso do
livro de Judite:
1 Cor 10,10-12 – E não murmureis, como também alguns deles murmuraram, e pereceram pelo
exterminador. Ora, tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão
escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos.
Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia.
Nesta passagem, Paulo está dizendo que quando os
hebreus saíram do Egito pela liderança de Moisés, muitas coisas sobrevieram
sobre aquele povo. O apostolo escreve que muitos foram ceifados pelo
“exterminador” (algumas traduções colocam
“destruidor”). Esse conceito aparece no livro de Judite e provavelmente, o
discípulo do Senhor tenha utilizado tal referência ao escrever sobre essa
situação aos cristãos de corinto:
Jd 8,24-26 – “Aqueles, porém, que não aceitaram essas
provações no temor ao Senhor e se impacientaram, murmurando contra ele,
foram feridos pelo exterminador e pereceram pelas serpentes. Por isso, não nos
irritemos por causa do que sofremos”.
É importante observar que o Pentateuco narra uma série de
fatos, entretanto, a morte pelo
exterminador encontra-se somente no livro de Judite.
Dessa forma, é fácil entender o porquê os
primeiros pais da Igreja fazerem citações constante da versão grega: o uso dos
escritos traduzidos pelos 70 (setenta) sábios judeus em Alexandria, já fazia
parte da tradição apostólica.
2 – Segundo (falso) argumento: O livro ensina a
vingança e atos imorais.
O livro de
Judite narra à história da vitória do povo eleito de Deus, graças à intervenção
de uma mulher.
O grande questionamento no que diz respeito ao
enredo da narrativa é o fato de Judite ter enganado o general Holofernes (Jd 11; 12 e 13) e posteriormente tê-lo
decapitado, entretanto, há outros exemplos nos próprios escritos protocanônicos
que revelam ações pouco amistosas dos israelitas. Vejamos algumas:
EXALTAÇÃO DE UMA MENTIRA
No capítulo 11 da epístola aos Hebreus, o
escritor exalta a fé dos patriarcas e pessoas que contribuíram para a
preparação do caminho da vinda do messias. Especificamente no verso 31, a prostituta
Raabe tem sua ação celebrada:
Hb 11,31 – “Pela fé Raabe, a meretriz, não
pereceu com os incrédulos, acolhendo em paz os espias”.
“Pela fé” – a fé de Raabe é exaltada por conta
de sua ação em esconder os que espiavam Jericó, entretanto, ao lermos o livro
de Josué, percebemos que ela mentiu
ao rei para proteger os Israelitas:
Js 2,1-6 – “E Josué, filho de Num, enviou secretamente, de Sitim, dois homens a
espiar, dizendo: Ide reconhecer a terra de Jericó. Foram, pois, e entraram na
casa de uma mulher prostituta, cujo nome era Raabe, e dormiram ali. Então deu-se notícia ao rei de Jericó, dizendo:
Eis que esta noite vieram aqui uns homens dos filhos de Israel, para espiar a
terra. Por isso mandou o rei de Jericó dizer a Raabe:
Tira fora os homens que vieram a ti e entraram na tua casa, porque vieram
espiar toda a terra. Porém aquela mulher tomou os dois homens, e os escondeu, e
disse: É verdade que vieram homens a mim, porém eu não sabia de onde eram.
E aconteceu que, havendo-se de fechar a porta, sendo já escuro, aqueles
homens saíram; não sei para onde aqueles homens se foram; ide após eles depressa,
porque os alcançareis. Porém ela os tinha feito subir ao eirado, e os tinha
escondido entre as canas do linho, que pusera em ordem sobre o eirado”.
A VINGANÇA COMO UM PEDIDO DE ORAÇÃO
No capítulo 9, verso 2, Judite exprime certa vontade de vingança:
Jd 9,2 – “Senhor, Deus de meu pai
Simeão, em cuja mão puseste uma espada para vingança contra os estrangeiros que
desataram o cinto de uma virgem, para sua vergonha, que desnudaram sua coxa
para sua confusão, e profanaram seu seio, para sua desonra; porque disseste:
<não será assim>; e eles o fizeram”.
Tal passagem é uma das mais usadas no sentido de
desmerecer a obra, uma vez que, Judite clama a Deus por justiça. O problema é:
o texto apresenta divergência entre a relação do amor de Iahweh com a raça
humana?
A resposta é
óbvia: não. Muitos outros livros descrevem situações semelhantes.
Observemos Sansão
que pede a Deus “força para vingar-se” de seus inimigos:
Jz 16,28 – “Então Sansão clamou ao Senhor, e disse: Senhor Deus, peço-te que te
lembres de mim, e fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez me
vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos”.
Semelhantemente,
Josué (e toda Israel) ordena que mate
a família inteira de Acã:
Js 7,24-25 – “Então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram a Acã filho de Zerá, e a
prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus filhos, e suas filhas, e seus bois,
e seus jumentos, e suas ovelhas, e sua tenda, e tudo quanto ele tinha; e
levaram-nos ao vale de Acor. E disse Josué: Por que nos perturbaste? O Senhor
te perturbará neste dia. E todo o Israel o apedrejou; e os queimaram a fogo
depois de apedrejá-los”.
Já no livro
de Deuteronômio, a “lei de Talião” é ensinada:
Dt 19,21 – “O teu
olho não perdoará; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por
mão, pé por pé”.
Todas
as passagens encontram-se nas bíblias protestantes e retratam com fidelidade
situações que não diferem dos livros deuterocanônicos. Sendo assim, não há
porque caracterizar o livro de Judite como “não inspirado” usando
argumentos que são facilmente desmontados pelas obras canônicas do cânon
hebreu.
3 - Terceiro (falso) argumento: a própria história
do livro é uma grande heresia.
É
muito comum que no ambiente acadêmico teológico protestante, as acusações
feitas aos livros deuterocanônicos, sejam carregadas de críticas infundadas e
desprovidas de conhecimento histórico bíblico. E por que dizemos isso?
Justamente por entendermos que muitas situações criticadas na obra, aparecem
corriqueiramente em outras histórias protocanônicas.
A
história do livro narra a vitória do povo de Deus por intervenção de uma mulher
chamada Judite. Tal mulher foi guerreira, corajosa e assim como muitos outros
personagens bíblicos, mostrou sua fé no único Deus de Israel.
Mas
há quem diga que a história é herética. A grande questão é: será que a
narrativa é diferente de outros livros?
Vejamos alguns fatos:
- Para salvar a sua própria pele, Abraão
mentiu ao afirmar que Sara é sua irmã (Gn
20,2). Sara era mulher do patriarca;
- O escritor do livro do Êxodo, afirma que
Deus beneficiou as parteiras que mentiram para o faraó na intenção de proteger
o futuro profeta Moisés (Ex 1,15-21);
- Raabe, a prostituta, mentiu para os homens
do rei de Jericó para proteger os espiões israelitas (Js 2,1-6); O escritor da epístola aos Hebreus celebra sua memória (Hb 11,31);
- Eliseu mentiu para os Sírios, levando-os
para Samaria (2 Rs 6,8-23);
- Jeú foi astuto aos mentir para os
adoradores de Baal e posteriormente, matando-os (2 Rs 10,18-28).
Se
tivéssemos que desconsiderar o livro de Judite por conta de “atos impróprios”,
por que os apologistas protestantes continuam a considerar os demais?
CONCLUSÃO
Desde a ruptura dolorosa que a Igreja sofreu pela conhecida “reforma
protestante”, muitos são os ataques dirigidos a ela, seja na esfera dogmática,
teológica e eclesial. Felizmente, sabemos que a promessa de Jesus é eterna (Mt
16,18) e que a construção do Reino de Deus começa com a nossa iniciativa em
defender a santa fé de nossos antigos pais.
E é nesse sentido que encontra-se o artigo aqui elaborado. O cânon
bíblico transcende os séculos e a formação que encontra-se à disposição para
nós, leigos, sacerdotes, religiosos e demais pessoas (cristãos ou não),
custou anos de discussões entre as mais altas esferas e, foi de dentro da Santa
Igreja Católica que a verdade repousou como a brisa suave do Espírito Santo.
Sendo assim, como contestar algo já confirmado através de antigos
concílios? Tudo aquilo que foi posto nesse pequeno artigo, não passa de
afirmações já feitas há muito tempo pelos santos padres e teólogos da Igreja,
entretanto, faz-se necessário afirmar mais uma vez, aquilo que é
verdadeiro. A obra de Judite, assim como os outros livros do velho
testamento, possui detalhes e semelhanças que nos revelam o amor de Deus para
com seus filhos. Não há problemas com a obra e sim, má fé daqueles que querem
desmerecer o livro.
Confiemos no Senhor e confiemos na
Igreja que é guiada pela trindade.
“Sim,
sim, Deus de meu pai, Deus da herança e Israel, Senhor dos céus e da terra,
criador das águas, rei de toda a criação, ouve, tu, a minha súplica”. (Jd 9,12)
BIBLIOGRAFIA
- Manual de
Defesa dos Livros Deuterocanônicos; Rafael Rodrigues; 2012.