INTRODUÇÃO
Diferente do novo testamento que
apresenta provas concretas de que as almas, após a separação do corpo, possuem
um destino (Mt 10,28; Lc 16,22-27; Lc
23,43; Fp 1,23; II Cor 5,8; II Cor 12,2-3; I Pe 3,18-19; I Pe 4,6) o velho
testamento, por sua vez, nos remete a uma série de questionamentos sobre qual
seria a doutrina correta do destino daqueles que morrem.
Há abundante literatura que
aborda o tema. Por diversas vezes, muitos teólogos procuraram nos escritos
vetero-testementários, indícios com informações concretas que ajudassem a
entender a teologia judaica sobre tal assunto, porém, as situações encontradas
nem sempre foram favoráveis. Tanto a escola mortalista, como a imortalista,
ainda sim, procuram entender com uma melhor clareza no que consistia a “morada
dos mortos” (Xeol) para o povo hebreu.
O “Xeol”, assim designado nas passagens
do antigo período, pode ser encontrado em diversos textos, entretanto, para
cada um, deve ser interpretado levando em conta o contexto apresentado pelo
escritor. O Xeol pode significar “abismo”, “sepulcro”, “cova” ou como é melhor conhecido, a “morada ou mansão dos mortos”. Embora esse termo nem sempre tenha uma ligação
direta com a mansão dos mortos, muitos teólogos sempre viram no Xeol, o antigo
lugar (antes da vinda de Cristo) onde as almas residiam. A parábola do “Rico e
do Pobre” do evangelho de Lucas 16, demonstra o pensamento judaico na época de
Jesus, com uma sutil diferença: embora bons e maus tivessem o mesmo destino,
alguns teriam uma melhor recompensa.
O presente texto, não procura
criar uma nova dimensão daquilo que já foi debatido exaustivamente, até porque,
a doutrina católica é muito solida quanto a isto. A ideia é demonstrar que
antes da época macabaica (onde o helenismo era dominante), existiam indícios de
que os hebreus não eram inteiramente mortalistas (como alguns protestantes
possam sugerir) e sim que alguns pensadores acreditavam que a alma era imortal
e residia no Xeol.
Para uma melhor compreensão, as passagens bíblicas que tratam sobre o assunto, foram separadas por livros.
GÊNESIS
Gn 37,35
Texto: “Todos os seus filhos e filhas vieram para consolá-lo, mas ele recusou
toda consolação e disse: ‘Não, é em luto que descerei ao Xeol para junto do meu
filho’. E seu pai o chorou”.
Comentário: José havia sido vendido por seus irmãos, entretanto, para Jacó, ele
tinha sido morto. Israel estava ferido pela suposta morte de José e diz ao
restante de seus filhos que não aceitaria as consolações, pois, “desceria ao
Xeol para estar junto do seu filho” e isso seria feito em luto.
NÚMEROS
Nm 16,30 e 33
Texto: “Mas se Iahweh fizer alguma coisa estranha, se a terra abrir a sua boca
e os engolir, a eles e tudo aquilo que lhes pertence, e se descerem vivos ao
Xeol, sabereis que estas pessoas desprezaram Iahweh. Desceram vivos ao Xeol, eles
e tudo aquilo que lhes pertencia. A terra os recobriu e desapareceram do meio
da assembleia”.
Comentário: Coré, filho de Isaar, havia enchido seu coração de orgulho e junto de
duzentos e cinquenta israelitas, ajuntaram-se contra Moisés e Aarão. Por conta dessa
rebelião, o poder de Iahweh “tocou” a terra que abriu a sua boca e como
castigo, engoliu Coré, todos os seus homens e toda a sua família. O fato
curioso é que todos eles “desceram vivos” ao Xeol que é o local da
“habitação dos mortos”. Aqui, o Xeol não é entendido simplesmente em uma
perspectiva de sepultura e sim, de um local que está presente na existência.
DEUTERONÔMIO
Dt 32,22
Texto: “Sim! O fogo da minha ira está ardendo e vai queimar até o mais fundo do
Xeol; vai devorar a terra e seus produtos, e vai abrasar o alicerce das
montanhas”.
Comentário: Neste verso, o Xeol é retratado como um local de existência “física” que é designado
nas profundezas da terra.
I SAMUEL
I Sm 2,6
Texto: “É Iahweh quem faz morrer e viver, faz descer ao Xeol e dele subir”
Comentário: É um verso de difícil interpretação. Ora, se as escrituras atestam que
os que já estão condenados ou salvos, não podem retornar e tão pouco comungarem
da mesma sorte (Lc 16,25-31), como
aqueles que estão no “Xeol” poderiam “descer ou subir”? Nesta passagem, o
escritor não deseja afirmar que possam existir mudanças em nossos julgamentos e
sim, atestar que o poder de Iahweh não se limita as regiões profundas, onde
encontra-se a mansão dos mortos, pelo contrário, seu poder é maior que qualquer
existência. Uma coisa parece certa: para os judeus, os mortos desciam a essa
habitação.
I Sm 28,19
Texto: “Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo
Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã, tu e os teus filhos estareis comigo, e o
exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus”.
Comentário: O verso acima trata-se da visita de Saul a feiticeira de Endor. Existe
uma série de interpretações e objeções quanto a esse relato narrado no capítulo
28 de I Samuel. Para entendermos essa passagem, temos que levar em conta alguns
pontos:
- A “necromancia” era uma pratica proibida pela Lei (Lv 19,31);
- Samuel já estava morto e o profeta já não interveria a favor de Saul (I Sm 27,3);
- Saul consultou Iahweh por diversas formas e não obteve respostas. O silêncio de Deus, foi um duro golpe (I Sm 28,5-6).
Saul havia expulsado do país os necromantes e adivinhos
(I Sm 27,9), porém, em uma atitude
desesperada em procurar soluções para a possível armada que se levantaria a
favor dos filisteus, pede a seu(s) servo(s) para buscar uma mulher que pratique
adivinhação. No decorrer do relato, a mulher “chama Samuel” (V. 12) e o mesmo aparece e inicia o
diálogo com Saul (V. 15). Aqui,
devemos nos perguntar: Se essa prática é condenava veementemente pelas sagradas
escrituras, como foi possível que a alma de Samuel ali aparecesse?
Há alguns teólogos que entendem que este verso não
passou de uma “intervenção demoníaca” e que ali não seria, se não, um espírito
maligno, entretanto, também podemos analisar o contexto por outras vias. Se
Deus não havia respondido ao rei por outras formas, a intervenção de Samuel
seria de fato um último aviso da rejeição de Iahweh para com Saul. Deus havia
usado a forma “errada de Saul” para de fato, retratar o seu fim. Além de que, é
totalmente claro que o escritor ao relatar o acontecimento, deixa claro que é
Samuel que ali aparece (V 12). Temos
que também, levar em consideração algumas coisas:
- Se de fato fosse uma intervenção demoníaca, jamais haveria a verdade. Aquilo que a alma de Samuel fala a Saul, retrata momentos vividos pelo profeta enquanto estava em vida (Compare: [I Sm 27,16 = I Sm 16,14]; [I Sm 27,17 = I Sm 16,13]);
- A alma de Samuel anuncia a morte de Saul e de seus filhos pelas mãos dos filisteus (Compare: I Sm 27,19 = I Sm 31,2-13);
- O escritor deixa claro que após ouvir as palavras de Samuel, Saul cai ao chão aterrorizado (I Sm 28,20).
É certo dizer que neste caso específico, Deus permitiu
que a alma de Samuel se manifestasse verdadeiramente. Existem muitas
interpretações de teólogos cristãos que procuraram entender esse acontecimento
e embora os livros do cânon hebraico não manifestem qualquer opinião sobre a
“alma de Samuel” (do pecado de Saul, sim [I
Cr 10,13]), encontramos em um livro deuterocanônico a prova real de que os
Judeus, pelo menos em tese, acreditavam que ali estava o próprio Samuel. Assim
lemos em Eclesiástico:
Eclo 46,20 – “Até
depois de morrer (Samuel) profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra
(Xeol) elevou a voz profetizando para apagar a iniquidade do povo”.
A literatura sapiencial afirma que Samuel profetizou
após a morte e que do seio da terra elevou a sua voz. Esse “seio” é a morada
subterrânea dos mortos (Nm 16,33) de
onde Samuel surgiu:
I Sm 27,14 – “Saul
indagou: Qual é a sua aparência? A mulher respondeu: É um velho que está
subindo; veste um manto”.
Sendo assim, Samuel estava no XEOL.
II SAMUEL
II Sm 12,23
Texto: “Agora que o menino está morto, por que jejuarei? Poderei fazê-lo
voltar? Eu, sim, irei aonde ele está, mas ele não voltará para mim”
Comentário: Davi havia cometido um pecado contra Deus ao tomar para si a mulher de
Urias. Betsabéia engravidou do rei e como castigo, a criança veio a óbito
(V.18). Essa passagem chama-nos a atenção por expor uma possível crença que até
então, não era bem compreendida para a época: a existência de uma habitação
onde os mortos residem. Ao que tudo indica, Davi parece crer neste local. Ao
ser questionado por seus criados do porque não estar em luto por seu filho, o
rei responde de forma severa alegando que já não há nada que se possa fazer,
uma vez que, o menino não voltará. Ao contrário disso, é ele que irá ao local
em que o menino está (Xeol).
I REIS
I Rs 17,21-22
Texto: “Estendeu-se por três vezes sobre o menino e invocou Iahweh: ‘Iahweh,
meu Deus, eu te peço, faze voltar a ele a alma deste menino! ’ Iahweh atendeu a
suplica de Elias e a alma do menino voltou a ele e ele reviveu”.
Comentário: Os versículos acima não relatam a existência do Xeol, porém, nos
remete a um assunto sempre retratado em debates teológicos: a imortalidade da
alma. Lemos claramente que após a morte do menino, a alma dele havia se
separado de seu corpo e que Elias clama a Iahweh para que a “alma do menino
volte”. Para a alma retornar ao corpo e animá-lo, é necessário que a mesma
continue a existir e diferente do que muitos mortalistas pensam, nesta
passagem, seria impossível que ela (alma) tivesse morrido. A não ser que outra alma
fosse criada e isso seria absolutamente impossível. Podemos aqui, enxergar a
existência do Xeol já que o menino foi ressuscitado e sua alma estando na
habitação dos mortos, retornou ao seu corpo.
JÓ
Jó 14,13
Texto: “Oxalá me abrigasse no Xeol e lá me escondesse até se aplacar tua ira”
Comentário: Jó tem sofrido de forma drástica pela perca dos bens, da família e de
terríveis doenças. Embora seja um homem justo, as regras acreditadas pelos
antigos de que consequências ruins viriam por algum pecado, parece atormentar a
mente desse homem. Em uma atitude desesperada, Jó deseja “abrigar-se no Xeol”
onde seria a única mansão fora da terra. Sua vontade em esconder-se nesta
habitação, seria pelo fato de poupar-se do possível “furor divino” que tem sido
descarregado em sua vida. Aqui, a mansão dos mortos ganha certo destaque na
literatura sapiencial.
Jó 17,13a
Texto: “Ora, minha esperança é habitar no Xeol (...)”
Comentário: Assim como na passagem anterior, Jó procura um lugar para abrigar-se
da “ira divina” que aplacava a sua vida. Claramente neste verso, há a confiança de uma morada externa que vem
a ser uma habitação fora dali, isto é, um local onde sua alma poderia repousar
tranquilamente.
Jó 19,26
Texto: “Quando tiverem arrancado esta minha pele, fora de minha carne verei a Deus”
Comentário: É incerto afirmar que através desse verso, Jó estaria falando do Xeol,
porém, o que nos leva a pensar que havia de fato uma esperança após a morte, é
o fato de que fora da carne, ele iria ver a Deus, isto é, após a morte do seu
corpo, sua voz não seria reduzida ao silencio (Fl 1,23).
SALMOS
Sl 55 (54),16
Texto: “Caia sobre eles a Morte! Desçam vivos ao Xeol, pois o mal se hospeda
junto deles, está no meio deles”.
Comentário: Mais um verso que afirma a existência da “habitação dos mortos”.
Semelhantemente a família de Coré que desceram vivos ao Xeol (Nm 16,33), o salmista parece desejar o
mesmo ao seus inimigos.
Sl 86 (85),13
Texto: “Pois é grande o teu amor para comigo: tiraste-me das profundezas do
Xeol”.
Comentário: O Xeol também era visto como um lugar de “justos e injustos” (Ez 32,17-32). Em diversas passagens,
lemos que as profundezas dessa habitação nem sempre eram bem vistas e que o
amor de Deus, os livraria desse possível
caos.
Sl 139 (138),8
Texto: “Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no Xeol, ai te encontro”.
Comentário: Para os escritores do velho testamento, o céu era o local onde Deus
habita e o Xeol, o lugar subterrâneo onde existe a morada dos mortos. Mesmo que
esse local fosse um profundo silêncio (Sl
115,25-26), Deus também poderia, ali, se fazer presente.
SABEDORIA
Sb 16,13
Texto: “Porque tu tens poder sobre a vida e a morte, fazes descer às portas do
Hades e de lá subir”
Comentário: Passagem semelhante a I Sm 2,6. O Senhor é aquele que tem o poder
sobre toda a existência. O “Hades” aqui mencionado é a forma grega do “Xeol”
(hebraico). Igualmente ao escritor de Samuel, o autor não tem a função de mostrar
que as almas que estão na habitação dos mortos, podem dali “subir” e sim,
afirmar o poder de Deus que habita em toda a extensão de sua criação. É
possível que o escritor da sabedoria, esteja referindo-se a possíveis “ressurreições”
que tenham acontecido pela mão dos profetas (I Rs 17,17-23; II Rs 4,33-35).
EZEQUIEL
Ez 26,20
Texto: “Far-te-ei habitar nas profundezas da terra, como as ruínas de outrora,
com os que descem para a cova de modo que não voltes a ser restabelecida na
terra dos viventes”.
Comentário: A “cova” aqui é sinônimo do Xeol. As profundezas da terra é o local
onde as almas dos mortos são reunidas e habitam.
Ez 32,17-21
Texto: “Filho do homem, faze uma lamentação sobre o povo do Egito. Faze com que
ele desça, juntamente com as filhas das nações – majestosas – para as regiões subterrâneas,
com os que descem à cova. A quem tu sobrepujas em beleza? Desce, deita-te com
os incircuncisos, entre os trespassados à espada. A espada caiu: arrastai-a,
com toda a sua multidão. Do fundo do Xeol lhe dirão os guerreiros valorosos,
seus aliados: ‘Os incircuncisos, trespassados à espada, já desceram, já dormem”.
Comentário: Na passagem acima, lemos uma situação curiosa: a crença de que “bons e
maus” poderiam se misturar na habitação subterrânea. Aqui, o faraó se junta aos exércitos da
Assíria, Elam, Mosoc, Tubal que outrora aterrorizavam a terra dos viventes.
Faraó é acolhido por todos os bárbaros, que anteriormente a ele, caíram nas
batalhas.
DANIEL
Dn 3,86 (parte deuterocanônica)
Texto: “Vós, espíritos e almas dos justos, bendizei o Senhor: cantai-o e
exaltai-o para sempre”.
Comentário: Embora algumas passagens do velho testamento possam dizer que o Xeol é
um lugar de silêncio (Is 38,18-19), neste texto, a possibilidade de exultar o nome de Deus, nessa região, é possível.
CONCLUSÃO
I Pd 3,18 – Com
efeito, também Cristo morreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a
fim de vos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual
foi também pregar aos espíritos em prisão.
Jesus com sua morte e ressurreição, inaugurou as
realidades do céu, convidando aqueles que outrora haviam prestado toda a
adoração a Deus a serem coparticipantes da Igreja celeste.
O Xeol trata-se de uma realidade do velho testamento
onde poucos entendiam seu significado e que por conta da revelação que ainda
estava incompleta, não poderia criar-se um conceito concreto. Com o advento do
Cristo, passamos a entender que esse local subterrâneo, passaria pelo anuncio
da boa nova do Senhor (I Pe 4,6) e que
posteriormente, as almas dos justos teriam um lugar onde descansariam até a
ressurreição dos corpos (Hb 12,22-24).
O salvador
desceu as regiões subterrâneas (Xeol):
Ef 4,9 – Que
significa “subiu”, senão que ele também DESCEU às profundezas da terra?
E dali inaugurou o que conhecemos por “céu”.
O Xeol está ligado diretamente à doutrina da imortalidade
da alma, pois, embora não existisse uma real certeza por parte dos judeus,
existem provas concretas que após a morte, a alma habitava na “mansão dos
mortos”.
In corde Jesu semper
In corde Jesu semper
Érick Augusto Gomes
Nenhum comentário:
Postar um comentário